domingo, setembro 24, 2006

CORPO E ALMA NA ESCULTURA - Armando Azevedo

Com ou sem explicações ou razões de ser no inumano, desumano ou humano, certo é que a escultura contemporânea não representa os filhos de Adão e Eva, nem masculinos nem femininos, se não em academismos, amadorismo, ou excepção.
Já não se figura o homem para viver eternamente... nem para dominar infinitamente o mundo terreno.
Já lá vai o tempo em que a idealidade helénica procurava esculpir o mais perfeito corpo para ser Deus ou herói, mas sempre modelo.
Enterrado sob os escombros do Império Romano ficou a magia, ficou o poder da estátua conferiu o domínio imperial ou a nobreza ao retratado. Soterrados nas ruínas jazeram os retratos onde o naturalismo ( agora realista) conseguia deveras identificar a individualidade... (Que emocionante eloquência a de um patrício com bustos de antepassados, um em cada não!).
Renascimento é ressurreição do corpo – a alma não morre.
Da quietude, serenidade, harmonia, equilíbrio do corpo partiu-se em busca da visualização da inquietude, do movimento, do desequilíbrio, da dinâmica da alma.
Partindo-se da naturalista representação do corpo (visível), vai-se procurar tornar visível a (invisível) alma, fazer presente a abstracção, tornar apreensível, experienciável empírico, sensorial o espaço-tempo, já não insatisfatoriamente apenas inteligível, não apenas ideia a priori.
Lembro o pertinente pensamento de Paul Klee: “A arte não representa o visível, torna visível”.
Se belo é o prazer estético, prazer provocado por um sentido superior (vista ou ouvido) sem desejo, então a arte passará a ser deveras ( intransitivamente, claro) fruída (e não transitivamente usufruída) depois de Kant...
Fará, assim, sentido uma escultura sem utilidade, sem servilismo, sem importância, sem erotismo (do corpo, da animalidade)... Os sentidos nobres, se efectivamente superiores, e se de facto libertos de desejo, não funcionam condicionados, orientados, dirigidos, comandados, pelas necessidades naturais, do mundo fisiológico, pela fome e sede da animalidade... Não, são janelas da racionalidade, portas de um mundo – outro, pressentido, imaginado, intuído, não excluído pela inteligibilidade.
Libertos das correntes da sobrevivência, tudo é intransitivo, tudo é autotélico, tudo é vivido em clímax: entra-se num casamento místico, anunciado nas Bodas de Canã, vive-se um erotismo puramente da alma, da vontade, da liberdade, goza-se o Paraíso num Tabor desmaterializado, feito luz, feito Forma, comungam-se êxtases nem sequer sonhados, vê-se a sacralizada Fonte de Duchamp no que os prisioneiros da sobrevivência vêem um banalíssimo urinol.
É deste mundo – outro que se vem tentando visualização e visibilidade.
Entendendo-se facilmente, na escultura, a evolução do figurativo ao abstracto, torna-se previsível, se não óbvia, a não representação do corpo do homem, perseguindo-se-lhe, sim, a alma, a desocultação do ainda não visível no mundo dos corpos – sombras.
... A escultura continua, porém, serviçal, útil a outras vidas que não à sua (porque não à da Arte), não tendo contado, ao contrario da pintura, com um Courbet que fizesse aparecer “Estúdio do Escultor”...
... Mas apareceu Rodin e a “Porta do Inferno”, coroada pelas “Três sombras” – lembrando-nos, respectivamente “As Portas do Paraíso” e a “Alegoria da Caverna” dando luz às “Três Graças”.
E, talvez não por acaso (?), é esta a mais necessária das portas a transpor... para entrar(mos) na(s) obra(s) de Pedro Figueiredo (a quem sugiro e peço a criação da(s) Porta(s) da Terra”).
Não nos iludamos, trata-se de escultura não convencionalmente representativa, sem os antigos referentes, modelos ou motivos. E só não digo que não é figurativa, porque não há apenas figuras representativas mas também apresentativas, incluindo as geométricas, incluindo as da formatividade, incluindo as da criação... para além das do criado.
São ensaios de meta-escultura. É o esculpir em si, na sua intrinsecidade, o fazer-comunicar-fruir em valiosa autotelia.
É a excelência do fazer estético documentado em plenitude, no efeito, na plurívoca eloquência dos registos (dos “regestos”, perdoem-me o estratégico erro).
No útil (e mais acentuadamente no utilitário e ainda mais no utensílio) só importa a causa final. Mas na obra estética, na forma poética o valor está na heterogeneidade, na globalidade do “faber” onde nada é insignificante: alem e acima da representação, a gestualidade, a matericidade e a formatividade, empaticamente na escultura em que a causa final é o esculpir.
Temos hoje a consciência de que bem mais do que ser bela a arte semelhante à natureza, verdadeiramente bela, é a natureza que se assemelha à arte. É este o relâmpago que obsessivamente atravessa o esculpir de Pedro Figueiredo.
Não persegue as formas naturadas, criadas, formadas...; busca, sim, as formas da criação, do criar, do formar, da formatividade, as formas formantes... Sabe que não é criador o que copia o criado, mas o que põe a criação em acto, o que atinge o poder de criar, na medida em que algo surge do nada. Não é criador o que representa (reapresenta) um mundo já visto mas o que apresenta – pela primeira vez, claro – um mundo (ou, ao menos, algo) novo.
Disse – e reafirmo – que as peças de Figueiredo não são convencionalmente figurativas. Mas, à evidencia, muito menos são abstractas... e ainda menos rotuláveis de conceptuais.
A arte conceptual privilegia a concepção em detrimento, sobretudo, da execução. Ora, é, antes de mais, a eloquência do fazer que nos convida à comunhão do prazer estético. Pelo menos, muito notoriamente, no acto livre, voluntário, criativo de Pedro Figueiredo, concepção, deliberação, decisão, e execução fundem-se na verdadeira simultaneidade do gesto formante.
As suas criações lembram(-me) Rodin... mas também Renoir, Degas... Seurat e Van Gogh... e Matisse... mais ainda Giacometti e Calder... e, ainda mais fortemente, Brancusi... e a “Alegoria da Caverna”...
Para Platão, como sabemos, há três camas, em hierarquia descendente: a Ideia de cama, criada por Deus, sendo no homem necessidade, parte da animalidade; a cama feita pelo marceneiro, mera sombra da Ideia (mas utilizável não só para dormir...); e a imagem de cama – pintada, que não considera a esculpida pelo artista- sombra da sombra, no seu parecer. E em boa verdade, se é rigorosa e exclusivamente o conceito (o significado) ou analogia no mais alto grau, então tem razão. Só que...
Não se deve confundir sobrevivência e vida e, menos ainda, reduzir o Homem à animalidade. “A minha cama é outra” – dirá o Esteta, mesmo lembrando-se do “primum vivere...”.
Na linha de Platão, haveria correspondentemente à cama, três tipos de homem: a Ideia de Homem, criado por Deus (anterior ou posterior ao pecado original?); o homem concreto, por exemplo, Platão (sombra do Adão antes de colher o fruto do conhecimento?); e o homem pintado ou esculpido (imagem de Platão continuando o exemplo, sombra da sombra?).
A questão está aqui.
Deverá mais a arte à sombra do homem ou o homem à arte?
“A arte é o homem” – dir(-me-)ão, recebendo (a minha) total concordância.
A arte é precisamente o homem mas no fabricar não determinado nem condicionado pelo mundo natural. É o acto plenamente voluntário de comunicar, de produzir objectos sem utilidade, sem transitividade, sem adiamento... mas autotélicos, com função, portanto.
Se belo é o que dá prazer pelos sentidos superiores limpos ou depurados de desejo, então uns olhos-outros são convenientes, são mesmo precisos para a apreciação da escultura, nomeada e particularmente de Pedro Figueiredo.
A ideia (de Platão), Brancusi materializou-a, apresentou-a como forma, tendo passado as sombras a Ideia. É ainda ou já o ovo, mesmo quando já ou ainda parece peixe, pássaro, cabeça...
Para Figueiredo, a Ideia é a Escultura em si, ela mesma, intransitiva, em asidade... propondo uma outra “alegoria da caverna” ou a alegoria de uma caverna-outra, desafiando-nos a desembrulhar as esculturas-sombras.
Veremos então metáforas que utilizam o corpo humano.
Não é o representado em perspectiva maneirista, são os grandes pés (e as grandes mãos) eventualmente da própria Escultura – ela mesma, bem assente no chão mas voando, fugindo à (lei da) gravidade. São incontáveis gestículos-beijos, expressão e formatividade em gesto unificado, etimológica e semanticamente caligráfico.
São estátuas que revelam um olhar de olhos posicionados ao nível do chão em hiperbólica perspectiva.
Realisticamente coladas à terra de que foram criadas, têm naturalmente base, (em metafórica prosopopeia) pés. Pés (ou mãos) enormes, se em primeiro plano na tal hiperbólica perspectiva, não pertencem à figura humana mas Sim à Arte ganhando corpo, manifestando-se, tornando-se visível.
Contemos os pés.
Vejamos que, se os “opostos complementares” se tocam, é precisamente pelos pés que se fundem numa só carne, mesmo em “repouso”.
Não é o acto sexual representado. É a visualização do prazer sem desejo.
Uns fazem panelas; outros, liras; ainda outros, objectos artísticos...
Pedro Figueiredo apenas esculpe.
Descubro que, afinal, “esculpir” pode ser rigorosamente um verbo intransitivo.
Não menos que Miguel Ângelo, Marcel Duchamp tem razão: Tire-se o que está a mais (matéria, indigestão, fastio, ou desejo...) e veremos a Fonte.
É.


A ALMA DA ESCULTURA


Março 2006

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